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Nelson Cadena

Nelson Cadena: o Bonfim a pé ou de outro jeito

“Quem tem fé vai a pé”. Você leitor ouve falar disso todo ano, o que apenas confirma a eficiência do mote publicitário recriado na década de 80 para ancorar as campanhas dos órgãos do turismo e da mídia em torno da Lavagem. Mas, nem sempre os baianos foram a pé no Bonfim, nos primórdios ia-se pelo mar em pequenos saveiros e mais tarde, a partir da década de 1840, em barcos a vapor que ancoravam no Porto da Boa Viagem, ou, no da Lenha em Itapagipe. Eram os legítimos romeiros em romaria que pernoitavam no local e à noite se reuniam em volta das fogueiras que a Irmandade da devoção mandava espalhar no largo da festa e em torno dele.

 

Outros, que ali constituíram casas de veraneio, iam de cavalo, montados em alazães que deveriam participar das cavalhadas de argolinha, e mais tarde nos coches puxados por equinos que Rafael Ariani explorava como transporte público e também para locação, desde 1852. Quem de fato ia a pé eram os marujos que deitavam no chão um pedaço de pano das velas de suas embarcações e descalços, num ritual de devoção e agradecimento, seguiam em romaria do cais até a colina, recolhendo neles as esmolas para ofertar ao santo. Enfrentavam os caminhos de terra enlameados e quase sempre intransitáveis que o mar invadia, nos verões chuvosos, alagando a baixada.

 

Um dia a Irmandade mandou construir as suas custas a Avenida dos Dendezeiros e após fez a ligação definitiva com a cidade, através da Avenida Jequitaia, com esse objetivo adquirira em 1815 a grande gleba de terras de dona Maria Ciolante. Então já dava para ir no Bonfim a pé e, também, através da primeira linha de bondes de Salvador, a partir de 1869, que teve como destino, pela sua importância estratégica, Itapagipe. Não era um cortejo organizado e a principal motivação dos andantes era a falta de oferta para a demanda. Os jornais queixavam-se da carência de bondes para atender a população e explicavam a decisão de muitas pessoas, cansadas da espera, de enfrentar o percurso a pé.

 

Então, o trem da recém-inaugurada estação da Calçada passou a ser mais uma opção para os devotos que ali desembarcavam e faziam o transbordo, através do serviço de bondes, ou, a depender do tráfego, enfrentavam a pé o resto do percurso. Já no século XX ir a pé na quinta-feira da Lavagem era um cortejo que de fato saía inicialmente da Praça Marechal Deodoro porque era lá que existia a infraestrutura de camas de palha, cocheiras e água para os muares e equinos e era lá também o ponto da linha de partida do bonde.

 

Na década de 1920, o préstito incorporou os corsos, onde as famílias mais abastadas da cidade faziam o percurso em carros conversíveis o que lhes permitia uma certa privacidade. Na década seguinte, a estrutura de cortejo se configura a partir de vários elementos agregados à festa, já com a participação de dezenas de milhares de pessoas percorrendo o roteiro entre a Conceição da Praia e o Bonfim. Uma banda de clarins abria o desfile, seguido de ciclistas com bicicletas ornamentadas e o presidente da comissão organizadora montado a cavalo, presidindo uma guarda de honra também montada. Evidente influência das guardas de honra dos blocos carnavalescos tradicionais da época (Fantoches, Cruz Vermelha, Inocentes...).

Após a cavalaria, seguia o carro alegórico da Nova Corbelha conduzindo baianas e atrás dele uma banda de música. Então, vinha o cortejo das baianas conduzindo os potes de flores na cabeça e na sequência o carro do Instituto de Cegos e logo mais as carroças enfeitadas, os aguadeiros com seus burricos e os primitivos caminhões conduzindo foliões-devotos e, fechando o cortejo, o povo em romaria. Os caminhões se multiplicam nas décadas seguintes mais tarde atropelados pelos trios elétricos que saem de cena em 1996. Fiquemos por aqui para não lembrar a proibição das carroças em 2012, cinco anos transcorridos dessa tragédia que feriu a tradição e empobreceu o cortejo.

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