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Saga de Rogilene: estudante consegue passagens para ir a Portugal; campanha continua


 

De origem humilde, ela pedalava do Lobato até a Biblioteca dos Barris para estudar e passou em Direito na Ufba. Seu próximo destino é a Universidade de Coimbra

  • Amanda Palma

Publicado em 04/08/2017 às 15:34:16
Atualizado em 17/04/2023 às 09:38:05
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Quando pedalava do Lobato até os Barris para estudar, Rogilene Bispo, 28 anos, não imaginava que estaria um dia na capa de um jornal. Nesta sexta-feira (4), ao espanto, com a repercussão de sua história e da campanha para arrecadar dinheiro para bancar sua ida à Universidade de Coimbra, publicada ontem pelo CORREIO, juntou a alegria: a estudante conseguiu as passagens para Portugal.

"Uma colega da faculdade, me ligou avisando que tinha conseguido o patrocínio para passagem, mas ainda não tenho detalhes. Vou ainda ligar para ela para saber", contou Rogilene, que cursa o sétimo semestre de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Mas a arrecadação continua porque Rogilene precisa do restante do dinheiro para arcar com a documentação e outros gastos que vai ter por causa da viagem. "É tudo muito caro para conseguir viajar pra fora. Por isso tem tanta gente que não consegue ir", diz a estudante. A meta é arrecadar R$ 15 mil e até o momento foram doados R$ 5 mil. 

Para viabilizar a viagem e permanência, ela criou uma vaquinha online, para que qualquer pessoa possa participar e ajudar. Rogilene conseguiu uma vaga de mobilidade para estudar na Universidade de Coimbra, em Portugal (Foto: Marina Silva/CORREIO) Enquanto setembro não chega, Rogilene faz planos para o período que vai passar em Portugal. Além da dupla titulação, ela vai tentar faz um mestrado, já que é graduada pelo Bacharelado (BI) em Humanidades. "Em Portugal, eu quero fazer mestrado junto com a dupla titulação. Sei que vai ser puxado, mas quero dar início ao mestrado, porque eu quero lecionar na Ufba. Quero me envolver em pesquisa, quero me dedicar a isso", revela. As aulas começam em setembro e a estudnte ficará por dois anos no país.

A ideia dela é conciliar a carreira de professora universitária com um cargo público. "Eu quero conciliar os dois. Quero a carreira pública, por causa da estabilidade. Para uma pessoa que vem de baixa renda é muito importante e eu não quero estar em um escritório privado, para trabalhar o dobro e passar por humilhação. Vou para  Defensoria ou Procuradoria", explica.

Hoje ela faz parte do Observatório da Pacificação Social, da Faculdade de Direito da Ufba. Em Portugal, Rogilene vai estudar durante quatro semestres diversas vertentes do Direito, como Romano, Administrativo, da União Europeia, Finanças Públicas, Fiscal, Das Obrigações e outros. Após a conclusão, ela vai estar apta para atuar nos dois países.

Repercussão Logo após a publicação da reportagem no CORREIO, Rogilene começou a lidar com outra situação: a fama. Ela contou que foi dormir às 3h30 respondendo mensagens no Facebook e solicitações de amizade. Uma boa parte das mensagens de incentivo para que ela vá a Portugal e outra pedindo ajuda e orientações na vida acadêmica.

"É uma loucura, eu saio na rua todo me reconhece, eu passei no shopping e o moço me disse e disse que estava torcendo por mim. Mas também me procuraram para pedir ajuda. Um rapaz mesmo disse que tinha feito vestibular, mas perdeu e estava querendo desistir. Quero ajudar essas pessoas também. Eu estou aberta a ajudar a quem precisar", afirma a estudante.

Rogilene reafirmou hoje que quer mostrar que é possível chegar mais longe, apesar de todos os preconceitos. "Pelo fato de eu ser negra, é tudo mais difícil, mais complicado. Mas quero mostrar que é possível que o negro chegue onde quiser", diz.

Relembre a história Moradora do Lobato, no Subúrbio Ferroviário, Rogilene Bispo teve dificuldades desde a época da escola. Teve ainda que conciliar estudo e trabalho e, muitas vezes, para ajudar nas despesas de casa, ia com as irmãs e a mãe trabalhar na Feira do Rolo, na Baixa do Fiscal. Tudo isso para não cair na “vida mais fácil” do crime, como ela chama.

“É tudo muito tenso aqui. As pessoas nem acreditam que eu estudo Direito. Tenho que mostrar o comprovante. Foi muita dedicação. Eu lutei muito pra passar na Ufba. Tive um ensino muito deficitário. Comparando o ensino público e privado, é muito surreal”, analisa a estudante.

Mesmo com a trajetória difícil, Rogilene e as duas irmãs conseguiram ingressar no ensino superior. A irmã mais velha, Rogiene Batista dos Santos, 32, conseguiu uma bolsa do Prouni e se formou em Administração. Hoje, ela é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Controladoria e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP).

A irmã mais nova, Rosângela Maria Bispo, 23, é aluna do curso de Engenharia Ambiental da Ufba e também faz parte de um grupo de pesquisa na faculdade. É com a bolsa que Rogilene e Rosângela recebem que as despesas de casa são pagas. “Elas chegam junto mesmo, graças a Deus”, elogia a mãe delas, Gicelda Maria dos Santos, 58, que hoje está desempregada.

Gicelda nunca teve a carteira assinada e nunca recebeu nem um salário mínimo que pudesse dar conta da criação delas. Mas mesmo assim, se agarrou à fé em Deus para superar a violência doméstica que sofria do marido - ele quase tentou matá-la algumas vezes - e não desistir de dar um futuro melhor às pupilas.

“Se você desiste de um sonho, desiste da vida toda. Nunca teve a oportunidade, hoje essa porta abriu. Eu falei a ela: 'agarre com todas as forças. Olhe pra trás e veja como foi difícil a luta, como a gente conseguiu os frutos dessa luta e não pode pensar em recuar'”, disse a mãe para Rogilene, que agora pretende ir morar em outro país.

E para conseguir ingressar na universidade, contou com a ajuda de uma bicicleta. Ela pedalava de casa até a Biblioteca Pública dos Barris - uma distância de cerca de 15 km. Rogilene dividia a bicicleta com as irmãs Rogiene e Rosângela. Como não tinham livros para conseguir estudar, se revezavam para ir até o Centro estudar os livros que estavam disponíveis.

“Cada dia ia uma para a biblioteca estudar. Eu fazia cursinho no Universidade Para Todos, e estudava no Landulpho Alves [em Água de Meninos]. No fim de semana, minha irmã ia também. Ia pedalando mesmo. Passava pelo Comércio, Ladeira da Conceição até chegar lá. Depois comprei uma corrente e um cadeado. A gente prendia no Mercado Modelo para ninguém roubar, porque era o único meio que a gente tinha para ir”, lembra. Depois, as irmãs subiam o Elevador Lacerda e caminhavam até a Biblioteca.

A amiga bicicleta também ajudou dona Gicelda a realizar o sonho de fazer o curso técnico em Enfermagem, que concluiu em dezembro. “Eu sempre sonhei em fazer o curso técnico em Enfermagem. Depois que as meninas começaram a ganhar bolsa na faculdade, aí deu para pagar meu curso e terminar. Foi difícil, mas consegui, graças a Deus”, conta.