Artistas falam das dificuldades de fazer teatro fora de Salvador: 'realidade dificílima'

Espaços culturais abandonados, êxodo de artistas e falta de políticas públicas continuadas são denunciados

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  • Laura Fernades

Publicado em 23 de maio de 2017 às 08:08

- Atualizado há um ano

A comissão julgadora do Prêmio Braskem de Teatro já está avaliando os espetáculos que vão concorrer à maior premiação das artes cênicas baianas, no ano que vem. Porém, antes disso acontecer, vale dizer que a premiação deste ano, que aconteceu há cerca de um mês, deixou uma importante contribuição. Além de revelar os destaques de 2016 e homenagear o ofício, o evento ficou marcado por jogar luz sobre as dificuldades de quem faz teatro no interior do estado.

A principal responsável por isso foi a Companhia Operakata de Teatro, de Vitória da Conquista, que na hora de receber o prêmio de melhor espetáculo do interior, por Pariré, fez do seu discurso uma denúncia contundente: a terceira maior cidade da Bahia está carente de teatro. O discurso revelou para o público que o Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, de Vitória da Conquista, foi interditado para uma reforma que duraria seis meses, mas que já dura três anos e o espaço continua fechado.Discurso da Cia. OperaKata no Prêmio Braskem de Teatro destacou as dificuldades no interior do estado(Foto: Betto Jr./CORREIO)

“A gente enfrenta uma realidade dificílima na nossa cidade. Companhias foram desestruturadas, grupos estão sem espaços, colegas desistiram do ofício... Sabendo da relevância desse prêmio, esperamos que ele possibilite o deslocamento do olhar e do pensar dos nossos gestores culturais, dos nossos governantes, secretários de cultura, prefeitos... Enfim, de todos. Não apenas na cidade de Vitória da Conquista”, alertou a atriz e figurinista Ketia Prado, 30 anos, da Cia. OperaKata, durante o Prêmio Braskem.

Em entrevista ao CORREIO, Ketia chama a atenção que o Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima atende aos 24 municípios que estão reunidos em um dos 27 territórios de identidade da Bahia. Diante disso, a atriz ressalta que o fechamento do espaço “não representa só uma perda muito grande para Conquista, mas uma ausência do território inteiro, que já é carente”.

Ao mesmo tempo, Ketia destaca que o centro de cultura apenas simboliza as dificuldades. Para ela, faltam políticas públicas, ações continuadas, e isso se deve à “paralisação do processo de interiorização que era mais forte nas gestões anteriores”. “A suspensão causou um hiato muito grande nesse processo que estava rendendo frutos. Falta olhar com cuidado para o interior, que tem linguagens e identidades diferentes”, defende.

Em nota, a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBA) afirmou que, entre 2014 e 2016, foi realizada a primeira etapa de requalificação do Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, relativa às normas de acessibilidade. Em seguida, o espaço ganhou um projeto de reforma do Sistema de Segurança e Combate a Incêndio, cuja licitação está concluída. “O ineditismo e a complexidade da reforma são razões que justificam o tempo que vem sendo empregado”, diz a Secult sobre os serviços, que vão custar R$ 900 mil.

OcupaçãoO problema relatado pela companhia Operakata é, para o ator e diretor Fernando Marinho, 55, um problema constante no interior do estado. Curador e diretor artístico do Polo Teatral - Festival de Teatro do Interior da Bahia e presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Diversões do Estado da Bahia (Sated), Marinho afirma que as dificuldades estruturais, financeiras e de gestão se repetem.

“Chego em lugares onde preciso pagar a luz”, revela Marinho, destacando a falta de manutenção dos centros culturais vinculados ao governo. “Esses espaços estão funcionando  na miséria. Às vezes, a gente tem que pagar do bolso a vigilância 24 horas para poder trabalhar, além de material de limpeza...”, denuncia. “O cuidado com os espaços do interior é lastimável e o orçamento para a cultura nunca foi prioridade”, critica.Indicada ao Prêmio Braskem, a peça Matraga, do Grupo Conto em Cena, está em cartaz no Sesc Pelourinho, sexta (26) e sábado (27), às 19h30, com ingresso a R$ 30 | R$ 15 (Foto: Divulgação)

A situação precária provocou manifestações em diversas cidades e o caso mais recente foi em Juazeiro. A cidade teve o Centro Cultural João Gilberto ocupado por artistas perto da realização do Polo Teatral, festival que revelou muitos dos espetáculos do interior indicados ao Prêmio Braskem, como o vencedor Pariré.

“Estávamos às vésperas do Polo Teatral e o Centro Cultural teve todos os seguranças demitidos. Verdadeiro estado de abandono. Sentimos que a ocupação talvez fosse a única forma de manter contato com Salvador”, justifica o ator e diretor Francisco Fernandes ‘Devilles’, 33, da Cia. Primeiro Ato de Teatro, que acumula 34 anos de história em Juazeiro.

Devilles se queixa que a relação de Salvador com o teatro no interior é “distante e verticalizada”. “Com a ocupação, fizemos com que Salvador conversasse conosco. O teatro está sucateado e a gente quer que ele volte a ter vida. O Centro Cultural João Gilberto, único da nossa cidade, está sofrendo o que a cultura sofreu a vida inteira”, compara.

ÊxodoA falta de apoio também é destacada em Feira de Santana, mas a segunda maior cidade da Bahia goza de mais espaços culturais que outros locais. “A gente tem sorte, porque temos muitos teatros em Feira de Santana, mas não tem nenhum incentivo para movimentar esses espaços”, pondera o diretor, figurinista e iluminador Geovane Mascarenhas, 44, da Cia. Cuca de Teatro e do Grupo Conto em Cena.

Com 25 anos dedicados ao teatro, Geovane destaca que o movimento teatral de Feira tem crescido, apesar da crise que “sempre corta primeiro na cultura e na educação”. “Temos todas as dificuldades, mas temos os acertos que precisamos mostrar. O movimento do teatro aqui é muito forte e, pelo que vi, não deixamos dever para a capital”, garante.

Apesar de trabalhos bem- sucedidos, as dificuldades provocam o esvaziamento das cidades do interior, na opinião da dramaturga e diretora Fernanda Júlia, 37, do Núcleo Afro Brasileiro de Teatro de Alagoinhas (Nata). A ausência de investimento e de profissionalização está entre os principais motivos, segundo ela.A diretora e dramaturga Fernanda Júlia (ao centro) com o grupo Nata, na peça Exu - A Boca do Universo (Andrea Magnoni/Divulgação)

“Quando você escolhe a arte como profissão, o caminho é: ou abandona a arte ou sai do interior. A gente vai para a capital porque fica sem campo de atividade, não porque não gostamos da nossa cidade. O circuito profissional, infelizmente, está muito centralizado em Salvador”, conta Fernanda, que se divide entre Alagoinhas e Salvador com peças como Exu - A Boca do Universo e Siré Obá -  A Festa do Rei.

Prestes a estrear o espetáculo Oxum, a diretora defende que é necessário agir para acabar com o êxodo. “A única coisa que me mantém de pé é minha fé. Fé de que a gente consiga mudar esse contexto e possa entender a arte como sensibilizadora, revolucionadora do pensamento do indivíduo e da comunidade”, deseja.

Fernanda alerta que muita coisa ainda precisa ser debatida, como o poder da arte além do entretenimento. “Países que desvalorizam a arte, como o Brasil, subestimam seus artistas e impedem que ela possa fazer seu papel de ampliar o manancial simbólico da sociedade, de ser um grande espaço de reflexão”, finaliza.

Secretaria de Cultura divulga ações para fortalecimento do teatroAtravés de nota, a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBA) destacou que tem investido em ações de fortalecimento do teatro em todo o estado. Responsável pelas políticas públicas para o setor, na Bahia, a Fundação Cultural do Estado (Funceb) selecionou oito projetos através do Edital Setorial de Teatro do Fundo de Cultura da Bahia, em 2016, contemplando 31 cidades do interior.  Entre 2015 e 2016, realizou Seminários de Criação em Circo e Teatro em quatro cidades. Além disso, a Funceb fez parceria com o Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia (Filte) para garantir, em 2017, a apresentação de dois espetáculos do interior em sua programação.

A Secult destacou que investiu R$ 2 milhões no Edital Setorial de Teatro, do Fundo de Cultura, para 2017; R$ 898 mil no edital de Eventos Calendarizados; R$ 3.678 milhões no Edital do Programa de Ações Continuadas de Instituições Culturais, divididos entre o Teatro Popular de Ilhéus, o Teatro Gamboa Nova e o Teatro Vila Velha. No que se refere ao Fazcultura, captou R$ 648.400, em 2016, distribuídos entre o Domingo Tem Teatro - Ano 12, Prêmio Braskem de Teatro e Os Pássaros de Copacabana.

Alagoinhas recebe sete oficinas gratuitas de teatroCom objetivo de fortalecer o cenário teatral de Alagoinhas, o Núcleo Afro Brasileiro de Teatro de Alagoinhas (Nata) realiza sete oficinas gratuitas na cidade localizada a  124 km da capital baiana. Realizadas entre os meses de junho e julho, as oficinas são de preparação de atores, dramaturgia, dança, teatro de grupo, iluminação cênica, percussão para mulheres e produção teatral e elaboração de projetos culturais. As oficinas fazem parte do projeto Oroafrobumerangue e os interessados em participar da seleção podem se inscrever através do site www.natateatro.com.br/oroafrobumerangue.