Coluna Vertebral: A mineralização vertiginosa do ser humano

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  • Da Redação

Publicado em 19 de março de 2017 às 08:48

- Atualizado há um ano

No começo era o nabo. Ou o manjericão. Ou o amargo jiló. Lá pelos longínquos anos 1990 passei a perceber: iniciava jantares ou encontros amistosos com homens ou mulheres e, ao final da conversa, havia a minha frente vegetais, azedos e ácidos, em lugar dos amigos doces de sempre.

Essa fase durou pouco. Questão de meses, abóboras, rúculas e alhos-porós não haviam mais. Mineralizaram-se. Não poucas vezes, o queridão ou queridona com quem comecei sessão de comida japonesa metamorfoseava-se em forno de micro-ondas. Ou em singelos ferros elétricos.

A migração do ser humano do reino animal para o mineral, sem escalas, se deu em velocidade máxima. Cheguei a me surpreender quando P., entre sushi e outro, nocauteou-me: - Você é um merda. Dá muito mole para estagiários. Trata-os de maneira paternalista, como se procurasse suprir algo que não recebeu de papai e mamãe!

Quase me engasguei com a água sem gás. Depois me acostumei: era a franqueza psicanalítica que escapava dos divãs, conquistava outros redutos e não precisava haver alguém graduado em Psicanálise no outro lado da mesa ou da cama. [A mineralização do ser humano sacralizava-se].

Com a virtualização das relações humanas, esse processo mineralizador ganhou ares pandêmicos. A franqueza excessiva, a rudeza oculta, as traições explícitas, os nãos antes evasivos entraram na crista da onda. Vilão maior entrou em cena com bola e tudo e ganhou superpoderes: a mãe de todas as mazelas humanas, a indiferença – o hábito de não se ouvir o desespero do outro – galgou o mainstream emocional planetário. A ponto de dar status de beatitude ao ato de se negar algo a alguém, mesmo que esse não fosse por puro desdém.

Em Roma ajamos como os romanos, pois não? Diante de colega de trabalho portador de halitose que me provocava náuseas, golpeei-o: - Porra, por que você não vai ao dentista e cuida desse seu maldito mau hálito? Mineralizei-me. Mineralizou-se geral: no plano profissional, no plano afetivo, no plano familiar, no plano ‘totum’. Transformamo-nos em cobalto, nióbio, níquel, potássio, magnésio et al.

A amizade, baseada na cumplicidade e no bem-querer, foi para o inferno. Na árvore de amigos de que dispunha despencava um fruto a cada semana. Até o marido, teoricamente o cúmplice dos cúmplices, andou polemizando sobre detalhes anatômicos do meu pênis circuncidado. Disse-lhe na tampa: ele cultivava hábitos pouco higiênicos, tipo não lavar a bunda de maneira adequada, o que o mergulhava em nauseante bodum que me baixava o tesão a padrões glaciais.

Março de 2017: o ato sexual tem para mim o mesmo matiz sacrificial que escalar a cordilheira do Himalaia. Sou assexual há mais de dez anos – 1% da população mundial assim se declara. Os meus amigos incondicionais lotam um fusca dos anos 1960. Não acho que a solidão vá acabar comigo. Moro só & Deus. [Moramos todos.]