Coluna Vertebral: a mulher do homem que caiu do cavalo e morreu

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Publicado em 14 de maio de 2017 às 07:15

- Atualizado há um ano

O século vinte quarentava quando a ocorrência se deu. Lá pelos grotões mais ermos das franjas do sertão baiano, nas bandas da bacia do rio Jiquiricá, homem bem apessoado, capa de chuva de feltro grosso, chapéu de couro e bota de sete léguas, atravessava a cavalo serra pedregosa e escorregadia. Chovia.  Do sítio ao redor dizia-se: era ‘pedaço de mau caminho’;  ou onde ‘Judas perdeu as botas’.  [O comerciante errante Antônio Martiniano estava no lugar e na hora errados – e o infortúnio aconteceu]. O animal resfolegou diante de cobra que visualizou a boreste, relinchou de terror, recuou, alteou as patas, o homem caiu do cavalo e morreu. [Causa mortis: fratura exposta dos joelhos. Não socorrido a tempo, a gangrena lhe corroeu coxas, joelhos, canelas e pés, e o cavaleiro veio a óbito.]Joana, então quarentã, ficou viúva e zonza. Chorou mil e uma noites – talvez mais depois que os cunhados lhe invadiram a casa e lhe rapinaram algumas centenas de caraminguás de cobre que Antônio Martiniano guardava em pote de barro. [Joana, então quarentã, ficou zonza, pobre de tudo – e, dizem os parentes, amarga feito fel. Restaram-lhe os cinco filhos José Bailão, Baraquísio, Miguel, Águida – a  única filha – e Francisco – o caçula].A matriarca arremeteu, respirou fundo e mergulhou na vida renhida. Botou os filhos mais velhos para trabalhar – e eles progrediram aos poucos. Tentava se livrar dos perrengues da vida cuidando das tarefas domésticas e zelando pelo bem estar da prole. Não escondia de ninguém certo chamego pelo caçula Francisco e pela filha única Águida.Teve netos aos montes, mas era sisuda e econômica em carinhos com os rebentos que vinham à luz. A ponto de não permitir que lhe chamassem de vó ou vovó – era tia Joana, e pronto, não se falava mais nisso. Mas, caprichosa do pilar, quando nasceram a primogênita do caçula Francisco –  a prima S. – e o ‘benjamin’ da única filha – eu – se tornou avó aplicadíssima. [Amava-me tanto quanto minha mãe me amava e eu a amava talvez tanto quanto amava a minha mãe].Vovó morreu quando eu tinha 9  anos e foi curto o nosso tempo de amorosa convivência. [Fui-lhe ao velório na casa da Rua da Ladeira, em Mutuípe-Bahia. O corpo estirado dentro do caixão sobre mesa alta encoberta por angélicas e antúrios, não conseguia lhe ver e beijar o corpo morto – e queria lhe ver e beijar o corpo morto.Foi quando homem mais velho – talvez meu pai Crispim, talvez Tio Francisco – me levantou pelos cotovelos e, digamos, me derramou sobre o rosto de vovó. Quase puxei o chumaço de algodão que lhe tapava as narinas para guardar-lhe de lembrança. Mas não. Preferi lambuzar-me nas rugas do rosto dela –e essas rugas do rosto dela grudaram no meu rosto feito tatuagem.[O homem que caiu do cavalo, e morreu, Antônio Martiniano de Souza, foi, coisas desta minha vida desassossegada – o arguto leitor já percebeu – o meu avô materno].