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Da Redação
Publicado em 23 de julho de 2017 às 06:40
- Atualizado há um ano
Lá pela garganta profunda de noite qualquer dos anos 1960, sem lua nua nenhuma no céu: vez em quando a luz faltava, a luz ia embora – parecia – para nunca mais voltar, nesta pacata cidade do sertãobaião, e os olhos verdes de tio Valdemar se tornavam os meus faróis, os meus guias, as minhas sentinelas avançadas. Ah, os olhos verdes de tio Valdemar, ai, ai, ai.
[Quando tudo se apagava, e o mundo ao redor era sugado e abduzido pelas forças da natureza e do caos, as vizinhanças gritavam, os irmãos gritavam, os primos gritavam, eu gritava – e só parava de gritar quando o brilho iridescente dos olhos verdes de tio Valdemar me alumiavam, me apascentavam, me aninhavam – e, sem qualquer resistência, me deixava afogar nos olhos verdes de tio Valdemar].
No éter da noite trevosa, pelos minutos-que-pareciam-uma-eternidade nos quais a luz fora embora – parecia – para não mais voltar, existíamos apenas eu e os olhos verdes iridescentes de tio Valdemar. [Quase sempre, quando conseguia escapar das garras do sertãobaião que o continha feito ventre materno contém feto que vai parir, ele nos brindava com visitas. Momentos inolvidáveis nos quais pontificavam histórias mal-assombradas de mulas sem cabeças, de almas penadas, de cadáveres que fugiam das sepulturas, de mocetonas com trouxas de roupas sujas na cabeça que apareciam nas nossas portas quando proferíamos a palavra desgraça.Ela, a desgraça em forma de mulher opulenta de carnes, gritava ‘ô de casa, ô de casa’ - e quando alguém surgia na porta da rua, a desgraça dizia: - Ocê me chamou. A partir de agora serei vossa e de vossa família até o fim dos tempos! Jamais se livrarão de mim!].Tio Valdemar tinha o pathos de ator desgarrado que se perdera de alguma imaginária trupe de circo mambembe. Nunca teve ribalta para lhe servir de proscênio. Minto. Teve. O palco de tio Valdemar era a nossa casa, onde, com todos os recursos de oratória e de verve dramática que o iluminavam, nos eletrizava com histórias de terror que ‘vivenciara’ se aventurando e se desventurando pelas brenhas do sertãobaião. [Ah, como eu o amava, e hoje ainda o amo mais porque sei: a minha imaginação de escritor tem muitos vieses ‘valdemarianos’, do qual me orgulharei para todo o sempre].O nosso tio mais teatral e mais cultuado era extemporâneo. Tratava-se - como se rotulava em novelas ainda dos tempos do rádio – de um ‘bastardo’. Explico: meu vô paterno José de Souza Menezes era homem que amava as mulheres. Além das duas com as quais se casou de fato – Senhorinha e Ana – se amasiou com ‘outra’ não se sabe de qual rincão do sertãobaião e, no leito cálido de alguma casa miserável dos altos grotões da caatinga, gerou tio Valdemar.Para meu pai e minha mãe, sábios, pouco importava se tio Valdemar nascera do ventre de moça impoluta ou de mulher de vida airada – como se dizia antanho. Eles o amavam muuuuuuito, e nós, filhos, o amávamos de maneira igualmente arrebatada. [Santa amorosidade, Batman!] [Salvelindo vô José de Souza Menezes! Salvelindo tio Valdemar!] [EvoévôZé!].
* A Coluna Vertebral terá todos os domingos uma ilustração de Carybé. Imagem do Instituto Carybé