Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.
Publicado em 16 de julho de 2017 às 08:00
- Atualizado há um ano
Começo pelo final. Feliz final. Eu e Dona Norma (D.N), a vizinha da casa em frente, fumamos o cachimbo da paz. [Há um ano, quando passei a morar neste primeiro andar de prédio singelo em Jequié-Bahia, vínhamos nos estranhando. O ponto de partida de minha cisma com D.N.: certa tarde de sábado, eu cultuava o silêncio como se cultuasse algum deus – e, de fato, o silêncio é algum deus. De repente, trilha sonora em altíssimos decibéis ricocheteou nos meus tímpanos].
Delirei: a voz (voz?) que cantava me remetia à velha geladeira gelomatic de minha infância que estaria emitindo grunhidos não identificados. Recobrei a razão e captei: a dona da voz (voz?] era cantora sertaneja hoje no topo do mainstream da cafonália geral brasileira.
O ápice de minha ira ocorreu em outra tarde de sábado, quando ouvi de novo a velha geladeira gelomatic de minha infância grunhir. Fui até a janela e vi que, da janela dela, D.N. estampava cara de êxtase como se ouvisse a Nona de Beethoven. Emputecido, fechei a janela com estrondo. Ela percebeu e, claro, magoou-se. [Um dia esbarrei-me com Dona Norma na rua Emiti gutural bom dia. Ela me virou a cara, com desprezo].
Há poucos dias, D.N., cabelos pintados de loiro à Medeia, subiu, exasperada, a escada que dá acesso ao meu bunker. Era o exato momento em que abria a porta para descer e colocar o saco de lixo na calçada. Quase dei um troço. Ela, conta de luz na mão, esbravejou-me: - Paguei a conta do sinhô! Cadê a minha conta que o sinhô pagou? [Rebobinei o filme e implorei legendas aos neurônios. Atarantado, pedi-lhe tempo e lhe prometi: verificaria nos meus papéis guardados de maneira caótica se havia alguma conta de luz paga com o nome de Norma G.M].
Ao sentar em frente a este notebook-doado-cinza-chumbo, fui, aos poucos, decifrando o enigma. Lembrei: 1. Em março, a minha conta de luz não fora entregue. 2. Dirigira-me então ao escritório local da companhia-de-energia-elétrica e pedi nova via. 3. Negaram-me. 4. Afirmaram que minha conta de luz já havia sido paga. [Como assim?].
Refleti, repensei, e bingo! A companhia-de-energia-elétrica entregara a minha conta de luz na casa de D.N. – e não entregara a ninguém a conta de luz de D.N.
Voltei ao escritório local da companhia-de-energia-elétrica, expliquei a inusitada ocorrência, pedi nova via da conta de luz do mês de março de D.N., e paguei na lotérica. Depois fui à casa da vizinha da frente, e elucidamos o mistério.
Matada a charada, eu e Norma G.M. nos pedimos desculpas, apertamo-nos as mãos – e desde então vivemos em certa harmonia. [Ontem mesmo, terça-feira, 11/7/2017, ao voltar para casa meio atordoado e nauseabundo depois de indigitada cirurgia num dente molar inferior, Norma G.M., sempre na janela, risonha e franca, acenou-me: - Tudo bem querido?].
PS. Talvez até suporte ouvir os grunhidos da cantora sertaneja hoje no topo do mainstream da cafonália geral brasileira. Por que não?