Coluna Vertebral: ensaios de santa tolerância ao cair da tarde

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Publicado em 28 de maio de 2017 às 06:00

- Atualizado há um ano

As monas, capitaneadas pela bicha-mor, o pai de santo Dom Lourinho – hoje gay octogenário bem casado no norte de Minas Gerais – tomavam conta da praça Rui Barbosa. Armavam bancas de acarajé e abará e nos entupiam com delícias gastronômicas de matiz africano. Eram plenos e dinossáuricos anos 1960 em Jequié-Bahia.[Poderia resultar choque cultural, confusão, pândega, mas não. Famílias caretas tementes a Deus deixavam quaisquer resquícios de homofobia e racismo no armário de casa e se confraternizavam em comilança lambuzada a azeite de dendê cozida e fritada pelos negros gays que entonces habitavam estas plagas sertanejanas].Claro, óbvio, ululante, a maioria de nós não engolia os requebros e maneiras efeminados dos vendedores de acarajés e abarás, e, muito menos, o tom ebânico da pele dessa trupe transviada. Mas quem disse que isso importava ali e naquelas horas?Obtusos frequentadores do Jequié Tênis Clube – frequentado pela elite local possível – e moralistas em geral esquecíamos, por um momento, preconceitos de qualquer natureza. Logo, devorávamos os quindins que ioiô Dom Lourinho & seus viados talentosos fabricavam, como se os quindins d’ioiô fossem feitos por mãos de fadas brancas importadas da Lapônia.[Na época eu ainda não conhecia a frase do genial poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, e quando a descobri, percebi: aquele evento exótico cabia, sem tirar nem por, na máxima brechtiana: ‘Primeiro a barriga, depois a moral’].Criávamos, sem pensar que estávamos criando,  simulacro de civilidade ao cair da tarde e ao crepitar do luar do sertão. [Na segunda-feira, tudo voltaria ao ‘normal’: a mãe que servira com prazer ao filho o abará e o acarajé feito por mãos negras e gays, não cumprimentaria nenhum desses ‘elementos’, se por acaso os encontrasse.O pai, na calada da noite, frequentador assíduo do terreiro de candomblé de Dom Lourinho com o intuito de que lhe fossem resolvidas demandas amorosas e financeiras? Virar-lhe-ia a cara quando o visse na fila do banco.Essa involuntária experiência exemplar de tolerância marcou a minha cabeça oca de meninote interiorano. Aplicou-me upgrade mental. Tive a chance de me deixar abduzir por aquele mundo de (então) convivência pacífica: famílias católicas homofóbicas e racistas conviviam de maneira civilizada, comme il faut, com pequeno e aguerrido grupo de gays e negros. Como se pertencêssemos ao mesmo mundo – e, de fato, pertencíamos, mas aquela singela sociedade jequiense demoraria muitas esquinas para perceber.[Alguns devem ter morrido sem que o óbvio lhes fosse revelado – somos todos iguais nesta noite escura – e lhes abrandasse as mentes rudes e tacanhas]. [Bem, quanto a mim, captei aquilo tudo com olhos de lince, digeri a mistura com gosto – e virei preta, preta, pretinha para todo o sempre].