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Da Redação
Publicado em 11 de junho de 2017 às 08:44
- Atualizado há um ano
O doido mais varrido de minha infância me acorda às três da madrugada. Sentado no chão do quarto, me diz com a desfaçatez que sempre caracterizou Guito Guigó: - Esqueceu, né? Eu não esqueço nunca. Em 14 de agosto de 1966 eu disse e ‘ocê’ correu pra dentro do casarão onde morava na avenida Rio Branco 817 se cagando de medo: - Vivo ou morto, 'vorto' para visitar 'ocê' na madrugada de 6 de junho de 2017. Eis-me aqui de regresso.[Acendi a luz do quarto, sentei-me na cama, e reparei no cavaleiro de triste figura que se materializara ao meu lado. Era mesmo ele: a mesma calça frouxa, o paletó surrado, o chapéu esmolambado de sempre que usava à guisa de cabelo, a barba por fazer e os pés de unhas sujas sempre descalços]. Não me assustei – por que me assustaria com morto querido? Indaguei-lhe: - O que você quer, Guito Guigó, a esta hora da noite, invadindo o meu quarto e me roubando o sono? Ele, com a voz meio rouca de antanho, foi direto ao ponto: - Quero que ‘ocê’ escreva sobre minha pessoa.Passou a repetir a frase como se fosse mantra. Convenceu-me. Fui até à sala onde escrevo, abri a janela e o bafo meio frio da madrugada me acordou de vez. Ele também veio olhar a rua deserta e afirmou, cheio de convicção: - Bem ali, depois daquela encruzilhada, ficava a ladeira do Maracujá, a rua das putas que sempre me 'dava' guarida.Já sentado na cadeira em frente a um notebook vermelho-iansã-pra-lá-de-moribundo, lhe proponho: - Escrevo com uma condição, me responda o seguinte: por que você odiava tanto que a gente lhe chamasse de baratão? Ele crispou o rosto, os olhos quase lhe saíram das órbitas, agitou os braços magros, esbravejou um raivoso ‘até-ocê, Roge’, pulou pela janela do primeiro andar e riscou a noite chuviscosa em direção à ladeira do Maracujá.Gostei de rever o louco varrido mais querido da minha infância. Louco de pedra. Mesmo. Ameaçava nos apedrejar quando o apupávamos com a seguinte e diabólica ladainha: - Guito Guigó. Mija na cama e diz que é ‘suó’!Guito Guigó e minha mãe tinham ótimo relacionamento. Dona Águida era criatura adorável, mas Guito Guigó tinha motivos ainda mais pragmáticos para lhe querer bem: os pratos caprichados de comida recém-feitos, que tinha ao alcance da boca em datas rigidamente agendadas. [Grudado na saia rodada de mainha, eu não lhe perdia uma visita sequer. Não o temia, como não o temi agora há pouco quando me acordou no meio da noite. Embora ainda não conhecesse a palavra, tinha-lhe compaixão, até mesmo certo carinho, como se fosse velho avô desgarrado].Os meus momentos de maior enlevo eram quando: 1. Guito Guigó se despedia e dizia à minha mãe: - Dona ‘Águia’, ‘vorto’ dia 27 de maio para de novo saborear a deliciosa comida que a senhora faz. 2. Guido Guigó voltava exatamente na data aprazada, e, após o bom-dia inicial, afirmava, com orgulho: - Não disse, dona ‘Aguia’, que ‘vortava’ hoje?[Baratão, que ele não me leia, era pontualíssimo. Mais fácil bois voarem do que faltar a compromisso marcado].