Quero pai e amor até mais tarde

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  • D
  • Da Redação

Publicado em 2 de abril de 2017 às 07:59

- Atualizado há um ano

[Cansei do meu próprio colo e da minha própria voz. Quis colo e voz de outrem. Escolhi o colo e a voz de meu pai]. Puxo ambos da minha memória e os coloco à minha frente, ajeitadinhos na cadeirinha de zinco branca-enferrujada da sala. Sento no colo de pai. Aciono a voz macia de pai. Uso fita de seda furta-cor, e começo a puxar da boca de pai palavras que ouvi.  [Os meus neurônios memoriais costumam fazer excelentes performances. Espero que não os decepcione, caro leitor, nesta COLUNA VERTEBRAL, deste domingo, 2 de abril de 2017].A coluna Vertebral traz todos os domingos uma imagem de Carybé do Instituto Carybé

A fita de seda furta-cor vai repetindo frases assim e assado: - Lugar de cachorro, menino e tamanco é debaixo do banco. O que não mata engorda. Quando um burro fala o outro murcha a orelha. O homem que muito fala dá bom dia a cavalo. Quem vê cara não vê cu. Considero loucos apenas aqueles que rasgam dinheiro e comem merda. Se o mundo fosse bom o dono morava nele. [Entonces a voz de pai fraqueja. Percebo: puxava a fita com muita rapidez, diminuo o ritmo, acalmo-o, e lhe dou água].

A fita furta-cor volta a circular na boca de pai: - Muito obrigado pelo copo de água, meu filho. Agradeça sempre quando alguém lhe faz um favor, e eu estava com muita sede. Passarinho que come pedra sabe o fiofó que tem. Cara feia para mim é fome. Espirro de gato é sinal de chuva. É mais fácil camelo passar pelo buraco da agulha do que homem rico entrar no reino dos céus. Quando urubu está de azar o de baixo caga no de cima. [Nova interrupção. Pai tem acesso de tosse, como se engasgasse na fita que teimo em lhe puxar da garganta. Paro tudo. Não quero forçar-lhe a voz-memória. Pergunto-lhe se quer mais água. Diz que sim. Reabastecido, surpreende-me com pergunta: - Você está bem? Continua sendo bom jornalista e escritor?  Perguntas não estavam previstas, mas respondo: - Há controvérsias.Pai volta ao status de boneco de ventríloquo. Puxo com o maior carinho que posso a fita que parece estar acabando. Ele volta a falar com malemolência e doçura: - Você sabe a diferença entre bufa e peido, meu filho? É a seguinte. A bufa é silenciosa, apenas cicia. Mas como fede! Já o peido troveja feito nuvem de chumbo varada por relâmpagos, mas quase não tem cheiro. [E murmureja: - Essa é boa, né Roge? Confirmo: - É sim, pai].

Penso em parar de puxar a fita, mas os olhos de pai brilham como se tivesse algo mais a me repetir. E repete: - Tudo demais é sobra. Dia de tudo, véspera de nada. Se merda valesse dinheiro pobre nascia sem cu. Esmola grande cego desconfia. Cavalo dado não se olha os dentes. Político tem o olho maior do que a barriga. Cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. E, empolgado, diz: - Ah, sim, o resumo da ópera. Não  esqueça nunca: a vida é um búraco!  [A fita acabou. O colo e a voz de pai, também].

Talvez eu tenha tido o único pai do Brasil que proparoxitonava a palavra buraco.  [Quiçá, quiçá, quiçá].